sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sobre o fim

Dentre os traumas e as neuroses mais cáusticas as quais desenvolvi ao longo da vida, a que mais me sensibiliza é, sem dúvida, a experiência da finitude. Um voo rápido sobre as minhas memórias mais antigas pode, ainda que sem intenção, desviar-me dessa epifania: o hoje é tudo o que se tem. E longe de ser uma dádiva (um presente), é uma sentença irrevogável que nos impinge doses desumanas de resignação.
Alcanço a rua com suas perguntas insolúveis. “Pra quê tanta perna meu deus!”, eu digo, mesmo não tendo bondes a passar por perto. Tantas pernas que sustentam corpos que sustentam cabeças que procuram manter uma centelha ínfima de peculiaridade em meio a este absurdo de pernas. Sentir-se especial: é o que todos buscam. Observo tudo com o mínimo de atenção. Esta paisagem, a qual já me deparei em inúmeros momentos, é hoje fácil de prever. O homem de terno cinza. Vejo-o galgar as calçadas com uma impertigada satisfação, enquanto conta seu dinheiro como um animal a roer ossos. Mantém o olhar clínico sobre os outros, sempre de desconfiança, sempre distintivo. Que coma merda. Rio de sua existência munido do único humor que me é permitido: cinzento, cru e finito. O homem de terno cinza também quer ser especial.
Na velocidade dos episódios, meu cigarro preenche o vazio. Delineia com precisão as pausas de uma sinfonia mecânica. Efeitos da nicotina. Posso estar em meus piores dias – ou em meus melhores – ele sempre estará lá, inquestionável, fiel e ardente. Uma mercadoria morta a qual eu atribuí vida. É patético como deposito meus sentimentos num bastão que se extingue em menos de oito minutos. Talvez seja necessário que a intensidade dos relacionamentos dure esse momento. Oito minutos – e não sete – em que você se entrega, aspira e expira. Você é verdadeiro, você é belo, você encerra todas as dicotomias do mundo numa palavra: você também quer ser especial.
Sofro do estômago. Os ácidos, os sucos, parece que todos eles percorrem meu corpo com a liberdade de antigos filósofos. Uma maldita pólis grega feita de bile que me faz gritar em silêncio. Mas nada pára. Ninguém nos espera nos contorcer de uma crise aguda para que depois retomemos nossos afazeres. De manhã tudo piora. Odeio a manhã. Toda aurora é um gemido de seda que busco rasgar com silêncio. Depois de alguns anos de reflexão estúpida percebi que nada de útil de processa das seis às onze: trabalho, deslocamento, vigília. Termos de uma equação burguesa que corre contra o relógio – máquina que ela própria inventara – que espacializa o tempo, esvazia nossas vidas e as projetam num calendário.
Negociar com o infinito é algo perigoso. No limite, não é humano. É intelectualmente inapreensível, e, todavia, o buscamos nas pequenas ações do cotidiano. Vi-me por vezes a tomar momentos e desejar que eles durassem a eternidade. Estupidez. Somente o nada é eterno. E é eterno porque nada é, e não pode ser coisa alguma, pois não tem fim; não tem dimensão. Somente o nada consegue dialogar com aquilo que não se pode conhecer. O nada permite tudo, é sonho, é deus, é o diabo... Um momento leve com companheiros bêbados, um romance barato, até o encontro eroticamente fulminante com um desconhecido são coisas que têm que acabar para fazerem sentido, para que se queira buscá-las.
A rua acabou. Desemboca de frente a um prédio antigo onde habitam pessoas idosas que, asceticamente, preservam costumes. Os hábitos se revelam bons quando atenuam a espera da morte; quando nos fazem aceitar cada sinal da decomposição como um lindo sinal da natureza. Tapeação cíclica, creio. Minha cabeça pára de pensar neste estuário de perguntas óbvias e, mesmo assim, intangíveis. O que resta fazer agora? Como evitar o fim? Minha cidade termina em meus pés e em meus pensamentos. Direciono a vista para cima como quem busca a chuva. “Sou o gênio da mansarda, afinal”. Egoísta, invisível, finito. Quem me conhecerá um dia, e saberá de minhas angústias? É solitário que chego às melhores conclusões.

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