quinta-feira, 17 de junho de 2010

Hoje peço demissão. Acordei mais tarde propositalmente (geralmente eu sou quem acorda primeiro) e esquentei o café da noite passada. 30 segundos no microondas. Sem açúcar, pelo amor de Deus. O apartamento estava um zona. No caminho bati com o joelho numa mesinha a qual nunca tinha visto na porra da minha vida! A desgraçada, além de trocar os móveis de lugar, deu pra redecorar o pardieiro agora. O trânsito não ajuda. No caminho escuto rádio: na verdade nem escuto, troco de estação freneticamente como se eu tivesse algum cacete de tique que me fizesse arrancar os ouvidos com a boca se sintonizasse no mesmo lugar por mais 3 segundos.

Meu chefe é um escroto. Mentira, ele é legal. Eu é que sou um escroto. A mulher dele sempre liga no escritório nas horas mais impróprias. A vadia além de ter muita grana não faz nada o dia inteiro. Sai da cama pra piscina, da piscina pra sala, da sala pra academia...Hoje peço demissão.

Anteontem o telefone tocou na mesa do chefe. O puto não atendeu porque estava numa reunião. Quando eu estiver em reuniões você pode atender o telefone em meu nome, o escroto me disse. Mentira, ele não é um escroto. Atendi. Era a vadia. Nem ouviu a voz e começou a gemer do outro lado da linha. Por que você não tá aqui pra me enrabar gostoso, seu filha da puta? ela dizia com voz de tele-sexo R$2,50 o minuto + impostos. Eu resolvi entrar na dança. Respondi sem disfarçar a voz. Eu é que sou um escroto. Ela percebeu que não estava falando com o marido, mas pareceu não se importar. Trocamos sacanagens por uns 20 minutos. Resolvi que era o momento de me aliviar e arriei as calças ali mesmo, na frente da escrivinha do chefinho. Bati uma e gozei na gaveta. Hoje peço demissão. Ele vai ficar uma fera, mas nunca saberá quem foi. O Jeremias está com a corda no pescoço, certeza que vão pensar que foi ele. Não é a primeira vez que o pegam fazendo o que não devia.

Desliguei sem me identificar. Quem será esse viado? ela pensou. Saindo de lá, sentei em minha mesa e conclui os pagamentos. Sim, sou o encarregado dos pagamentos. Jeremais Matheus Soares. R$1,240,45. O filho da puta ganha mais que eu. Tudo bem, o punheteiro vi ter que se explicar diante do chefe. E eu tô fora daqui.
Saio 15 minutos antes do meu horário. Entro no carro e finalmente consigo deixar numa estação só. I had to be you. A voz me ninava durante o congestionamento, era um sonífero, anestesia, leite morno antes de dormir. Só queria chegar em casa, olhar pra aquela merda de lugar bagunçado e vê-la sossegada assitindo a TV que nós compramos a prestações.

Luz apagada. Casa estranhamente limpa. Um bilhete em cima da mesa. A filha da puta não tem originalidade alguma.O ar de clichê invade o lugar. Prenúncio de lágrimas, chocolate dietético e filmes baratos com trilha sonora sofrível. Eu é que sou um escroto. Sento-me com calma na única cadeira usável. Pego um copo e me sirvo um dose. Tamburilo sobre o bilhete, sem lê-lo. Minha vontade é enfiar no rabo dela. O bilhete. A vida é dura, afinal. Amanhã penso na demissão.

terça-feira, 15 de junho de 2010

corpo assim
na sombra e sempre
decalque da carne
cor e tecido
quente

todo uma coxa
um braço
serpente
pergunta:
é teu?

corpo-voz
volátil ouvido
estúpido rumor
ridículo
corpo-grito
redunda
em fato

corpo pouco
corpo-fio
navega firme
e longe
meu corpo-rio.

domingo, 6 de junho de 2010

Lazy Eyes

Seu corpo é um piano. E enquanto ressonava sonolenta na cama, eu pude perceber as formas que ele adquiria durante o passar dos minutos. Fiquei observando com os olhos, com o nariz e as mãos: você e a música que tocava eram uma coisa só. Era como se toda a matéria se diluísse em sons, luz e perfume e eu me inebriasse de tudo isso com um ar de satifação plena.
É verdade, não acredito em destino, creio antes na liberdade. Toda nossa vida juntos se deu num esforço brutal de desconfigurar o destino: descrédulos de nós, nos entregávamos cegamente, jovens apaixonados, simplesmente seguíamos caminhos diferentes. O ambiente era constantemente preenchido com nossas incertezas e nossas desconfianças. Éramos muito livres tanto para o "sim" como para o "não".
Estragamos tudo muitas vezes, é claro. Eis outro exemplo da nossa contravenção afetiva. As pequenas demonstrações de carinho (algo que nos parecia inocente e prudente) eram seguidas por sacanagem incondicional, inegociável...E quando parecia que gozávamos de toda alegria do mundo, não tínhamos pudores em destruir tudo aquilo trocando ofensas e nos magoando.
Não sei o que será de nós. Construo sonhos pelo menos uma vez por dia e com a mesma freqüência os ignoro. Olho-a com amor e desinteresse, tesão e repúdio, carinho e raiva, encantamento e tolerância, ternura e espanto. Tudo vem junto. Tudo é livre para nós.
Preguiça em seus olhos. Tomara que o dia acabe em nossos pequenos prazeres. Dorme, meu bem...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Cartesiano

Do ponto estático
faz tua alquimia
Do toque exato, a sombra
o tato
Equaciona tua alma à minha

Em infalível método,
onde não coexiste,
curva e linha
determina consciente
início e término.

Sem contrário sem reverso
quantifica o tempo.
Baseia-se no imóvel
no inócuo, no intacto.
Sem haver deus-diabo.

Depois
exausto
retoma teu pesar e tua dúvida
padronizada
e a solução de tua loucura
1 + 1 = nada

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sobre o fim

Dentre os traumas e as neuroses mais cáusticas as quais desenvolvi ao longo da vida, a que mais me sensibiliza é, sem dúvida, a experiência da finitude. Um voo rápido sobre as minhas memórias mais antigas pode, ainda que sem intenção, desviar-me dessa epifania: o hoje é tudo o que se tem. E longe de ser uma dádiva (um presente), é uma sentença irrevogável que nos impinge doses desumanas de resignação.
Alcanço a rua com suas perguntas insolúveis. “Pra quê tanta perna meu deus!”, eu digo, mesmo não tendo bondes a passar por perto. Tantas pernas que sustentam corpos que sustentam cabeças que procuram manter uma centelha ínfima de peculiaridade em meio a este absurdo de pernas. Sentir-se especial: é o que todos buscam. Observo tudo com o mínimo de atenção. Esta paisagem, a qual já me deparei em inúmeros momentos, é hoje fácil de prever. O homem de terno cinza. Vejo-o galgar as calçadas com uma impertigada satisfação, enquanto conta seu dinheiro como um animal a roer ossos. Mantém o olhar clínico sobre os outros, sempre de desconfiança, sempre distintivo. Que coma merda. Rio de sua existência munido do único humor que me é permitido: cinzento, cru e finito. O homem de terno cinza também quer ser especial.
Na velocidade dos episódios, meu cigarro preenche o vazio. Delineia com precisão as pausas de uma sinfonia mecânica. Efeitos da nicotina. Posso estar em meus piores dias – ou em meus melhores – ele sempre estará lá, inquestionável, fiel e ardente. Uma mercadoria morta a qual eu atribuí vida. É patético como deposito meus sentimentos num bastão que se extingue em menos de oito minutos. Talvez seja necessário que a intensidade dos relacionamentos dure esse momento. Oito minutos – e não sete – em que você se entrega, aspira e expira. Você é verdadeiro, você é belo, você encerra todas as dicotomias do mundo numa palavra: você também quer ser especial.
Sofro do estômago. Os ácidos, os sucos, parece que todos eles percorrem meu corpo com a liberdade de antigos filósofos. Uma maldita pólis grega feita de bile que me faz gritar em silêncio. Mas nada pára. Ninguém nos espera nos contorcer de uma crise aguda para que depois retomemos nossos afazeres. De manhã tudo piora. Odeio a manhã. Toda aurora é um gemido de seda que busco rasgar com silêncio. Depois de alguns anos de reflexão estúpida percebi que nada de útil de processa das seis às onze: trabalho, deslocamento, vigília. Termos de uma equação burguesa que corre contra o relógio – máquina que ela própria inventara – que espacializa o tempo, esvazia nossas vidas e as projetam num calendário.
Negociar com o infinito é algo perigoso. No limite, não é humano. É intelectualmente inapreensível, e, todavia, o buscamos nas pequenas ações do cotidiano. Vi-me por vezes a tomar momentos e desejar que eles durassem a eternidade. Estupidez. Somente o nada é eterno. E é eterno porque nada é, e não pode ser coisa alguma, pois não tem fim; não tem dimensão. Somente o nada consegue dialogar com aquilo que não se pode conhecer. O nada permite tudo, é sonho, é deus, é o diabo... Um momento leve com companheiros bêbados, um romance barato, até o encontro eroticamente fulminante com um desconhecido são coisas que têm que acabar para fazerem sentido, para que se queira buscá-las.
A rua acabou. Desemboca de frente a um prédio antigo onde habitam pessoas idosas que, asceticamente, preservam costumes. Os hábitos se revelam bons quando atenuam a espera da morte; quando nos fazem aceitar cada sinal da decomposição como um lindo sinal da natureza. Tapeação cíclica, creio. Minha cabeça pára de pensar neste estuário de perguntas óbvias e, mesmo assim, intangíveis. O que resta fazer agora? Como evitar o fim? Minha cidade termina em meus pés e em meus pensamentos. Direciono a vista para cima como quem busca a chuva. “Sou o gênio da mansarda, afinal”. Egoísta, invisível, finito. Quem me conhecerá um dia, e saberá de minhas angústias? É solitário que chego às melhores conclusões.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Ex-isto (ou hesisto)

A ordem dos termos não importa aqui. Tanto fizera tomar a primeira palavra como subscrita, ou o inverso. O que me fez escrevê-las, no entanto, é o significado de total incorrespondência que elas estabelecem assim que postas lado a lado. São dois universos tensos num limite cáustico, contrastantes em suas origens, indicadores de estados de existência distintos. Dois neologismos, porém: "ex-isto" e "hesisto". Trocadilho barato e desimportante, típico de quem não tem nada a dizer.
O primeiro viera-me de um amigo (umamentiraamais.wordpress.com), que me presenteou com este nome (mal sabe ele). O significado atribuído, todavia, chegou só mais tarde, enquanto eu meticulosamente masturbava impropérios num papel. Uma ânsia por conceituar, refletir, brincar com as palavras.
Ei-la. Ex-isto.
Primeiro de tudo, denota um fim. Não é preciso um blog para saber que tudo o que é "ex-algo" indica um momento passado; ex-alguém, ex-quando, ex-onde. Da mesma forma, atribuo a qualidade de "ex-isto" a toda determinação agora indeterminada. É o processo inverso que caracteriza as coisas, que as torna inteligíveis. Em matéria de poesia, principalmente, lanço mão deste trocadilho como ferramenta de perspectivação. Para não oferecer muito pano à manga, restringir-me-ei essencialmente à poesia. Caso eu não seja claro, sempre poderei recorrer ao sustentáculo último dos literatos e dos poetas: a subjetividade.
Ora, não adianta fugir agora. Faço uso do "ex-isto" para re-signifcar, para questionar, para entender. Tiremos a essência das coisas! Vejamos o que sobra! Desvelemos a superfície crua que recobre os sentimentos, e as ideias que fazemos deles; essa superfície naturalizante e subjugadora. Desconstruamo-la.
Hesitação. A irrevogável contra-parte disso tudo. O faux pas que nos lança de volta à aceitação da realidade, à resignação contrita, àquele sorriso sacana das pequenas coisas. Hesitar, hoje em dia, não exige reparações nem desculpas, é algo cotidiano e despido de vergonha. Hesitamos em praticamente todas as matérias: pessoas, livros, roupas, psicotrópicos... A hesitação remonta o princípio da incerteza do "mundo moderno"; está presente em nossos desejos, em nossas escolhas, no carpe diem das revistas e dos corpos tatuados.
Existir e desconstruir, existir e hesitar (existir é hesitar ?). Incorrespondência tão viva essa, indissociável daquilo que somos, certificado de autenticidade de nosso ser estatutário. Contradição de uma dialética de quem não tem nada a dizer.